ESQUECIDA POR SPIELBERG: EMILIE SCHINDLER TEVE UMA VIDA DIGNA DE FILME
Esposa de Oskar foi tratada com desdém pelo diretor, embora sua trajetória tenha sido tão importante quanto a do marido
FABIO PREVIDELLI PUBLICADO EM 06/02/2022, ÀS 06H00
Oskar Schindler viveu uma vida intensa e inspiradora. Ao salvar centenas de judeus dos campos de concentração durante o Holocausto, o empresário se tornou um dos grandes personagens da Segunda Guerra Mundial.
Apesar de ter morrido pobre e quase desconhecido em 1974, aos 66 anos, a memória de Oskar foi resgatada pelo escritor australiano Thomas Keneally, que em 1982 publicou o livro ‘Schindler’s Ark’.
Com o sucesso na literatura, que fez de Keneally vencedor do Booker Prize e do Los Angeles Times Book Prize, o legado de Oskar Schindler se tornou ainda maior depois que o diretor norte-americano Steven Spielbergadaptou a história para os cinemas em 1993.
‘A Lista de Schindler’, que tem Liam Neeson como protagonista, conquistou sete estatuetas do Oscar em 1994, entre elas os principais prêmios como Melhor Filme, Melhor Diretor e Melhor Roteiro Adaptado. O longa acabou gerando uma receita de mais de 321 milhões de dólares.
No entanto, mesmo com todo sucesso, a versão de Spielberg peca ao deixar de lado uma personagem fundamental na vida e trajetória de Oskar: Emilie Schindler, sua esposa.
"Emilie Schindler, nascida Emilie Pelzl, foi uma mulher que desde o começo esteve ao lado de Oskar Schindler, não apenas como esposa, mas também como uma pessoa que foi seu braço direito para a salvação de 1.200 judeus na época mais triste da História, durante o Holocausto, na Segunda Guerra Mundial”, diz a biógrafa Erika Rosenberg-Band em entrevista exclusiva à equipe do site do Aventuras na História.
Erika, que vive na Argentina, não só conheceu Emilie como foi uma de suas grandes amigas, a quem ajudou em um dos momentos mais difíceis de sua vida. “Conheci Emilie em 1990. Oskar Schindler já havia falecido em 1974 e o filme foi lançado em 1993”, recorda.
Quando a conheci, não imaginava a história que eu estaria cruzando. Mas não a história de Guerra, mas a história de Emilie Schindler na luta de seus direitos contra uma ‘história oficial’ como a da Lista de Schindler”.
Emilie e Oskar
Nascida na aldeia de Alt Moletein, território autro-húngaro, em 22 de outubro de 1907, Emilie Pelzl conheceu Oskar Schindler em 1926, explica Erika. Na ocasião, Oskar havia visitado a fazenda do pai de Emilie, Josef Pelzl — um grande proprietário de terras no que era o Império Austro-Húngaro (atual República Tcheca) — para lhe vender motores elétricos.
“Oskar Schindler, junto com seu pai, foi até a residência dos Pelzl, naquele momento Emilie ainda se chamava Pelzl, oferecendo motores elétricos. Porque, em 1926, havia chegado a luz, a eletricidade no que hoje é a República Tcheca”, aponta Rosenberg-Band.
A biografia diz que, imediatamente, houve uma relação amorosa entre eles e, em pouco tempo, decidiram se casar, algo que não agradou muito os pais da jovem. “Eles não viam em Oskar um homem adequado para uma jovem que havia frequentado, até os 17 anos, uma escola religiosa de monjas”.
Mesmo os contrariando, Oskar e Emilie se casaram em 1927. Ela, então, se mudou para a casa dos pais de Schindler na cidade de Zwittau. “Assim, ela começou uma vida totalmente diferente, com uma família e costumes diferentes”, conta Erika Rosenberg-Band.
Em 1935, Oskar Schindler entrou para o Serviço Secreto do Terceiro Reich como um espião. Emilie, mesmo sem estar de acordo, o secunda desde o começo até o final da Guerra, o apoiando em todas suas ações de agente duplo, conta Rosenberg-Band, que explica que a situação era muito difícil para Pelzl naquela época, visto que as mulheres não tinham, socialmente, seus direitos reconhecidos.
Mesmo assim, ela se impôs”, diz a biógrafa. “Era uma mulher simples, nenhum pouco arrogante, solidária e muito autêntica. Uma pessoa que estava sempre preparada para ajudar ao próximo, era uma mulher que não pensava nela mesma, mas sim em como fazer o bem”.
O resgate de judeus
Em meados de 1938, Emilie e Oskar se mudam para a Cracóvia. Na cidade polonesa, Schindler conclui o arrendamento de uma fábrica de artigos esmaltados que entrou em falência. O local passou a ser conhecido como Emalia.
“Oskar Schindler começou a salvar judeus já no ano de 1938”, explica Rosenberg-Band. “Quando o Exército alemão invadiu a República Tcheca, em 1º de outubro de 1938, os primeiros perseguidos pelos nazis foram os judeus, que decidiram fugir para a Polônia sem saber o que lhes esperavam”.
Erika, porém, ressalta que a ajuda aos perseguidos não era feita somente por Oskar, Emilie também teve um papel fundamental no processo. “Então era ele [Oskar] que os transportava escondidos no porta-malas de seu carro. Emilie fazia exatamente o mesmo”.
A biógrafa conta que os dois tiveram um enorme sucesso em se esconder e escapar da SS e da Gestapo. “Mas, por outro lado, tinham imunidade porque ambos trabalhavam no Serviço Secreto. Eram espiões duplos”.
Ao todo, mais de 1.200 judeus foram salvos dos campos de extermínio por conta da ‘Lista de Schindler’. Além disso, Emilie também participou do resgate de judeus sem contar com a ajuda de Oskar.
Erika conta que, em janeiro de 1945, meses antes do fim da Guerra, Pelzl foi fundamental para o resgate de 120 judeus que seriam levados a um campo de concentração.
Em janeiro de 1945, quando a Guerra estava perto de seu fim, um transporte com 120 judeus chegou à fábrica quando Oskar não estava. Se Emilie não aceitasse os presos, o comandante iria fuzilá-los”, conta.
“12 deles já haviam morrido congelados. Os restantes estavam irreconhecíveis, não se conseguia distinguir se eram homens ou mulheres. Eles estavam com as cabeças raspadas e extremamente magros", continua. “Ela, então, fez com que eles descessem do trem. Eram esqueletos que não pesavam nem 30 quilos. Ela os alimentou, e salvou suas vidas”.
Rumo à Argentina
Em 1944, Berlim resolveu fechar o campo de trabalho em Plaszow e todos os fabricantes tiveram que mudar suas fábricas de lugar. Os Schindler se mudaram para Brünnlitz, na região dos sudetos, onde continuaram salvando judeus.
Após o fim da Guerra, Emilie e Oskar viveram na Baviera até meados de 1949. Depois se mudaram para a Argentina. “Foi um oferecimento da comunidade judia como agradecimento ao ato de salvamento de 1.200 judeus”, explica Erika Rosenberg-Band.
Em 1957, Oskar resolveu voltar para a Alemanha para cobrar uma indenização por conta de suas fábricas perdidas. Erika explica que o plano era que Schindler retornasse para a Argentina assim que conseguisse o dinheiro.
Àquela altura, o casal tinha uma dívida de um milhão de pesos (algo em torno dos 90 mil dólares na época). “A burocracia alemã lhe obrigou a postergar seu retorno. A relação dos dois sempre foi assim, com Emilie o respeitando, o querendo, o amando. Mas ele a queria à sua maneira, sempre buscando a oportunidade de ter alguma amante.
Após a partida de Oskar, houve uma troca de cartas entre eles. Se escreveram durante algum tempo. Até que em um determinado momento, Emilie percebeu que Oskar não voltaria mais. Ela decidiu rasgar todas as cartas e decidiu que não lhe escreveria mais”, relata.
Mesmo não tendo conhecido Oskar em vida, a biógrafa conta que Emilie lhe detalhou como era a relação entre os dois. “Sei que Oskar era uma pessoa completamente livre e gostava de ter uma infinidade de amantes, enquanto Emilie por conta de sua condição, de católica religiosa, suportava tudo isso e seguiu o ‘até que a morte nos separe’. E evidentemente a morte os separou”.
Apesar de continuar trabalhando na Argentina, em 1962, Emilie se viu obrigada a vender o pequeno terreno que tinha para poder pagar suas dívidas. “Emilie sempre teve dificuldades econômicas, tanto que, quando a conheci, me vi obrigada a ajudá-la a pagar faturas telefônicas, do gás que tinha em casa, de telefone... Inclusive, lhe paguei um voo para a Alemanha, de retorno; e até mesmo seu enterro”, diz Rosenberg-Band.
'Esquecida' por Spielberg
Erika Rosenberg-Band conta que Emilie Schindler jamais recebeu algum tipo de reconhecimento por seus atos.
“Em 1992, eu solicitei à Embaixada Alemã que lhe dessem uma condecoração por parte do governo alemão. Em 1994 foi condecorada com a Cruz ao mérito de Cavaleiro. E outras condecorações que consegui conquistar por meio da Argentina e de outros países. Mas, em questões econômicas, nunca recebeu absolutamente nada”, salienta.
Sobre o filme de Spielberg, Rosenberg-Band relata que a esposa de Oskar não só não recebeu nenhuma porcentagem pelos direitos da produção, como também foi desdenhada pelo diretor.
“Ele escolheu não retratá-la, antes de mais nada, por ser um misógino que não queria a figura de uma mulher em sua produção. Segundo porque não queria pagar o que correspondia a ela por direitos próprios [...] ele estava criando uma história que não tinha nada a ver com a história real”.
Ele publica uma história ‘oficial’ e por isso não precisa de Emilie. Assim a convida como se fosse uma judia salva por Oskar Schindler junto a seu esposo. É uma vergonha, realmente, que a produção e Spielberg não tenham investigado que ela era viúva”, completa.
O documento abaixo, cedido à equipe do Aventuras por Erika, corresponde a uma carta que Emilie recebeu de Spielberg em 7 de maio de 1993. Confira a tradução e imagem abaixo.
“Querida Sra. Schindler,
Você faz parte de uma história notável. Li pela primeira vez sobre o improvável resgate de Oskar Schindler a você mais de 1.300 outros judeus da ameaça dos campos de extermínio nazistas há mais de dez anos, e demorei até agora para trazer esse importante pedaço da história para a tela.
Atualmente estou em Cracóvia, Polônia, onde filmo ‘A Lista de Schindler’, baseado no romance de Thomas Keneally. A história de como suas vidas foram salvas será compartilhada com pessoas de todo o mundo como um grande filme até o final deste ano.
Mas a ‘Lista de Schindler’ não é meramente uma visão geral de um acontecimento na história. É uma história sobre pessoas, tão relevante agora quanto era quando aconteceu há cinquenta anos. Ao fazer este filme, foi muito importante para mim enfatizar nomes e rostos, não apenas datas e lugares.
O que me leva à razão pela qual estou escrevendo para você. Estarei viajando para Israel com minha equipe para filmar uma cena de epílogo no túmulo de Oskar Schindler. Eu ficaria profundamente honrado se você aparecesse na cena e me permitisse incluir seu rosto importante no filme.
Você e seu esposo estão convidados a virem a Jerusalém como meus convidados de 25 a 30 de maio de 1993. Faremos uma recepção especial para todos os judeus Schindler presentes em 27 de maio e vamos filmar no túmulo em 28 de maio. Meu escritório entrará em contato com você com mais detalhes e pagamentos de viagens.
Espero que você possa se juntar a mim em Jerusalém para fazer parte desta importante mensagem de paz para o mundo; o lembrete de que 'Aquele que salva uma única vida, salva o mundo inteiro', uma homenagem a um tempo que nunca deve ser esquecido. Estou ansioso para te ver”.
“Ao fim do filme, Spielberg coloca o seguinte: 'o matrimônio entre Emilie e Oskar fracassou e eles terminaram se divorciando'”, aponta Erika, que salienta que a frase é uma mentira, visto que os dois permaneceram casados até a morte de Schindler.
Sobre a escolha de Spielberg em não representar Emilie nos cinemas, Rosenberg-Band é enfática. “Eu acredito que seja justamente pelo assunto que tratei anteriormente: por causa da sociedade, que até pouco tempo atrás, era uma sociedade de ‘homens’ com pensamentos misóginos”.
“Um segundo motivo: a história apagou Emilie de todo o contexto porque, obviamente, preferiram explorar a história de um homem que já estava morto e que não poderia fazer nenhum tipo de correção às modificações históricas que poderiam fazer tanto os alemães, os polacos ou os judeus de acordo com suas necessidades históricas”, prossegue.
Por outro lado, como todo respeito ao filme, também foi uma forma de não pagar aos honorários que pertenciam a ela, que deveria ter recebido cerca de 5% segundo um contrato do ano de 1962”, completa.
No ano de 1962, explica Erika Rosenberg-Band, se pretendia fazer um filme sobre a história de Schindler com a MGM. “Com essa companhia cinematográfica, foi assinado um contrato: Oskar o firmou da Europa e Emilie da Argentina. Assim, os dois teriam direito a 5% dos valores recebidos com o filme. Mas a produção acabou não acontecendo”.
Ela explica que, anos depois, em 1967, a MGM abandonou o projeto. Após a morte de Oskar, um novo contrato foi negociado junto à Universal, desta vez sem a participação de Emilie. “Ela não tem nenhuma relação, tanto em seu em seu contexto, conteúdo ou em uma parte contratual”.